quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

O Direito Penal Mínimo e a Criminalização da Homofobia


Hoje um amigo me fez a seguinte pergunta (no facebook, num post sobre o PL122 que visa, dentre outras providências, criminalizar a homofobia): "[...] qual sua posição sobre a criminalização da homofobia frente ao movimento doutrinário que prega um "direito penal mínimo"?"

Achei pertinente dividir minha opinião com vocês. Segue a minha resposta para ele...

A referida doutrina prega, basicamente, que ao Direito Penal devem ser reservadas as condutas mais perigosas que atentam contra os bens jurídicos mais importantes. E, na minha opinião, a homofobia pode compreender uma gama de condutas das mais perigosas (e.g. ofender a integridade corporal ou matar) que não raras vezes atentam contra vários bens jurídicos de suma importância (e.g. integridade física ou vida). A homofobia é mais um daqueles processos que o anglo-saxão chama de “othering” (num neologismo português, “outrização”). Quer dizer, um processo através do qual se constrói a ideia de que existe uma categoria de “outros” que se opõe à categoria de “nós” – “nós”, seres humanos mais “corretos”, mais “normais”, “superiores”. A história mundial já mostrou a que ponto pode chegar um processo de “othering” – basta citar o Holocausto como exemplo. Por acreditar que a homofobia é tudo isso, sou a favor de sua criminalização e, no caso, não vislumbro qualquer atentado à doutrina do Direito Penal Mínimo. Alguns irão argumentar que se a homofobia é uma forma de racismo, desnecessárias seriam quaisquer alterações legislativas – a conduta já estaria tipificada e pronto. Mas eu acrescento que um tratamento legislativo-penal específico à homofobia atende à necessidade política-criminal de se mostrar a todos quão séria e perigosa é essa conduta. Dito doutro modo, ao lado dos meus primeiros argumentos, acrescento que a legislação penal exerce uma função simbólica que, no caso em tela, não pode ser ignorada. Ela, a legislação penal, também serve para mostrar à sociedade quais condutas são inconcebíveis ao ponto de se poder tirar a liberdade dos indivíduos que cheguem a praticá-las. E qualquer forma de “othering”, na minha opinião, é inconcebível a esse ponto.

Aqui no Blog do Asa Branca, gostaria de acrescentar mais uma coisa. A pergunta do meu amigo é muito boa, por nos fazer lembrar de uma questão importante: não devemos romantizar o discurso do Direito Penal Mínimo. Quando, nos nossos debates, defendemos a descriminalização de certas condutas, formas alternativas de punição (para evitar a pena privativa de liberdade), ou até mesmo questionamos a lógica punitiva, nada disso é no intuito de promover a impunidade ou de promover um Estado de liberdade absoluta em que todos possam fazer o que bem entenderem. O que fazemos, isso sim, é defender uma utilização mais responsável do Direito Penal, que se alimente de evidências científicas e não dos gritos do senso comum. O Direito Penal é tão extremo quanto importante e, por isso, ainda deve ser reservado às condutas mais perigosas. O que precisamos descobrir (ou explorar) são formas mais eficazes e eficientes de manusear essa reação extrema do Estado. Precisamos, num bom nordestinês, "cascavilhar" o que se esconde por detrás da lógica punitiva. Precisamos desmascarar a seletividade através da qual a punição é operada. Precisamos questionar o sucesso de políticas criminais que, dizem, deram certo noutras culturas e realidades sociais destintas das brasileiras. Precisamos encontrar outras respostas penais, mais justas e significativas que a prisão. Quando embarcamos em debates a favor de um Direito Penal Mínimo, portanto, não estamos aprovando (ou sendo indiferentes às) condutas que atentam contra qualquer bem jurídico - dos menos aos mais importantes. Estamos tentando encontrar, verdadeiramente, uma forma mais segura e harmônica de viver em sociedade. 

6 comentários:

  1. Nanda, amiga, perdoe-me, mas ouso discordar... e o faço na fala da criminologia crítica.

    O sistema punitivo reproduz todas as mazelas do sistema social, de modo que, no âmbito da criminalização, o preconceito e o machismo voltarão a se reproduzir, imprimindo nas vítimas um novo dano, o que chamamos de vitimização secundária.

    Outrossim, as necessidades da vítima não são levadas em consideração pelo sistema de justiça criminal - historicamente sabemos que o jus puniendi se propria da dor da vítima para justificar a sua intervenção, desprezando as suas necessidades - basta ver que as ações penais são públicas incondicionadas.

    Tudo isto retira a autonomia da vítima que é a principal protagonista do conflito, mas que sequer é levada em consideração. Além disso, a única "utilidade" do sistema punitivo diferente da opressão e da dor que causa é publicizar o conflito, chamando a atenção para a problemática. Ocorre,porém, que este efeito simbólico (positivo) tem um custo muito alto (seletividade, impunidade, segregração pela dor - sem qualquer fim da pena), de modo que cabe a nós questionar se vale a pena.

    Já terminando, este efeito simbólico (positivo) não educa a ética da tolerância e do respeito, incluindo para emancipar, ao revés, individualiza, cria ódio, dor, sofrimento, revolta, exclui - porque recai apenas naqueles que são mais vulneráveis ao sistema. E por fim, potencializa uma diferenciação que não deveria existir, afinal todos sofrem crimes contra a honra, contr a integridade física etc.

    Última coisa este efeito simbólico de publicização do conflito tido como uma vitória do movimento soical que se percebe fragilizado, no caso o LGBT, e se vê empoderado pela tutela penal, via de regra, como o foi com o movimento feminista, sofre o efeito simbólico negativo - que é a onda populista aproveitadora de políticos que na onda de aderir novos eleitores encabeça a criminalização, e assim, quem fala em nome da vítima, fala em nome de Deus, conseguindo adesão de quantos eleitores for possível. É assim que foi com a Lei Maria da Penha, é assim que já está sendo com a PL 122, denominada Alexandre Ivo. Lei (geral) com nome de pessoa?
    Ha, e faltou dizer - a criminalização de condutas é muito mais barato do que programas publicitários educativos, estes sim, importam transformação social, e não o sistema punitivo como um todo!

    Enfim, amiga, não se chetei com a discordância, é apenas um outro ponto de vista e como este é um espaço pra discutirmos, quanto mais postagens, melhor!!!!

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  2. Bab's,

    Fico feliz que há discordância! O debate só é rico quando elas - as discordâncias - existem! E só num debate rico é que somos dados a chance de melhor explicar os nossos posicionamentos. Agradeço, portanto, a oportunidade!

    Concordo com tudo que você falou em relação à incapacidade do sistema de justiça criminal de satisfazer as vítimas (ou, pior que isso, de vitimizá-las ainda mais). Concordo que a criminalização da conduta homofóbica não irá, portanto, confortar ou reparar o dano daqueles que foram (ou ainda serão) vítimas desse processo cruel de "outrização". Também concordo que o efeito simbólico da legislação que incrimina não é capaz de educar e, como se num passe de mágica, transformar uma cultura homofóbica. Também acredito na força dos programas publicitários, e concordo que esta estratégia é menos "eleitoreira" (e, portanto, menos atraente) do que reformas legislativas.

    Entretanto, para mim, não há diferença entre homofobia e racismo.

    As deficiências do sistema de justiça criminal, e a ineficiência da pena de prisão, ainda não me levaram a crer num abolicionismo completo do Direito Penal (onde quer que ele esteja, Louk Hulsman deve estar revoltado comigo - Sorry, Hulsman!). Pelo menos não por hora (ou por essa geração). Ainda NÃO sou capaz de, com base no pouco de criminologia crítica que ouso dizer que compreendo, defender a descriminalização de condutas como homicídio, estupro ou racismo. Ainda não estamos - falo atrevidamente em nome da sociedade, e sem procuração de ninguém - preparados para isso. E, como disse acima, para mim não há diferença entre racismo e homofobia.

    Com isso não estou defendendo a prisão daqueles que vierem a praticar condutas tidas por homofóbicas (nem a prisão de "racistas" ou "homicidas") e nem um processo criminal de desrespeito aos direitos das vítimas. Para mim, não há incoerência em se defender a criminalização da homofobia (ou, por exemplo, do homicídio) e, também, uma reforma penal que nos permita um dia experimentar processos mais inclusivos de resolução de conflitos criminais e respostas criminais menos punitivas e mais restaurativas.

    Gostaria de esclarecer que a minha defesa não é aos termos da PL122, os quais não analisei a fundo. O que defendo é que a homofobia é tão séria quanto o racismo. E, por coerência, se (EU) não sou favorável à descriminalização do racismo, sinto-me impedida de defender a não-criminalização da homofobia.

    Por hora, temo o processo de "othering" mais do que o processo criminal e não sou ainda capaz de acreditar, em tempos atuais, num mundo sem Direito Penal, muito embora eu endosse o coro daqueles que querem um Direito Penal Mínimo.

    Mas não se desesperem! Isso NÃO significa que abandonei a minha ânsia crítica em relação ao funcionamento do sistema punitivo. Só significa que estou, em tema de criminalização da homofobia, intelectualmente encurralada. Portanto, quem tem que se desesperar, sou eu! ;)

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  3. Adoro o Bab´s :), obrigada pelo carinho Nanda, que você sabe ser recíproco. Mas continuando nosso debate, continuo, queridinha, discordando :/ - ainda bem que isso só tem a nos enriquecer!!!

    Bom, que bom que concordamos em alguma coisa :)
    No que tange à homofobia e racismo serem semelhantes, isso aparentemente é bom, pois se assim o é, já temos a criminalização na lei de racismo!

    A questão do abolicionsimo, Nanda, não é do dia para a noite. Como disse Vera entre nós, e como o próprio Louk Hulsman repete - é um processo. E é um processo irreversível e já estabelecido em razão da incapacidade do própio sistema de justiça criminal.

    É necessário falar em abolicionismo como processo, não como ato imediato, o que muito diferencia a postura moderada das correntes radicais. Por isso sou fã do "Louk" (Vera Regina o chamando assim, contando várias histórias dele e o descrevendo como uma pessoa adorável, me fez ficar ainda mais fã dele!)

    De fato, agora sou eu quem concorda com você - não estamos preparados para a descriminalização de condutas graves, como você mesma mencionou- homicídio estupro, etc. e mesmo o racismo. Ora, se já há o crime de racismo, porque criminalizar outra conduta - inchando o sistema penal?

    Se já há crimes contra a honra, contra a vida, contra a integridade física, etc, porque criar um novo ? Como costumo dizer em sala de aula, é mais um artifício que resulta num "tiro no pé" - porque o sistema não poderá reprimir todas as criminalizações tipificadas, terminando por agir seletivamente, e partir daí já assina seu atestado de óbito.

    Isso já é uma postura abolicionista!!!Em vez de dirigir os esforços para os sitema de justiça penal, dirijamos nossas atenção para a educação contr a homofobia, e além de ser mais eficaz - como você mesma concordou- não caímos no jogo do pão e circo eleitoreiro...

    Enfim, não estou a dizer que a homofobia não deva ser considerada crime, deve! Mas como qualquer outra lesão corporal, injúria, injúria racial, homicídio, racismo... e não um novo tipo penal, inchando o que já está pipocado, como dizemos na boa linguagem nordestina :)

    Isso já é abolicionismo! Talvez seja tudo uma questão de linguagem, para que os acordos e desacordos teóricos se alinhem....

    É isso:) bjinhos

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  4. Bab's,

    Acho que chegamos a vários denominadores comuns! :) O que não poderia ser diferente, já que compartilhamos da mesma “fé”, quer dizer, já que o nosso ponto de partida (ou de chegada!) é o mesmo: é necessário lançar um olhar crítico sobre o funcionamento do sistema de justiça criminal.

    Sem trazer qualquer argumento novo à discussão, vou me pronunciar mais uma vez no intuito exclusivo de esclarecer meus “posts” anteriores:

    Segundo o art. 1o da Lei 7716/89, "Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional". Na minha opinião, este texto é incompleto – falta, para mim, a expressão "orientação sexual" (ao lado de raça, cor, etnia, etc.). Não estudei redação legislativa... talvez esta expressão deva ser incluída noutro dispositivo, noutra lei, ou talvez deva ser incluída outra expressão (que não "orientação sexual")... não sei. Mas, ao meu ver, o legislador não trata racismo e homofobia como condutas idênticas (ou merecedoras de idêntica reprovação). Para mim, existe uma lacuna em torno da questão da homofobia. Se não existisse uma lei específica contra o racismo – e qualquer conduta racista fosse punida como qualquer outro caso de lesão corporal ou injúria ou homicídio etc., conforme o caso – eu defenderia idêntico tratamento à homofobia. Mas a lei de racismo existe – e por razões políticas e históricas muito importantes (para dizer que não sou pela sua revogação). Por isso, não compreendo por que o legislador destaca a conduta de descriminar por razões de etnia, mas não confere mesmo destaque à conduta de descriminar por razões de orientação sexual.

    Quanto ao abolicionismo, sempre o entendi como um processo – não lembro de ter lido qualquer texto que destoasse desse entendimento, quer dizer, que defendesse um “abolicionismo imediatista” (muito embora eu não tenha sido clara nesse sentido no meu “post” anterior). Mas, como o texto do nosso próximo encontro – e o debate em torno dele – irá demonstrar, os abolicionistas discordam quanto ao grau de abolicionismo que desejam (ou que acreditam ser possível ou necessário) alcançar ao final desse processo. Eu acredito num abolicionismo moderado – que vislumbra benefícios na redução (e não verdadeira abolição) da esfera de atuação do sistema de justiça criminal. Acredito que o Direito Penal regula, hoje, mais do que deveria. Que as intervenções penais na vida social deveriam ser reduzidas ao mínimo possível. E sou da opinião que, dentro desse mínimo possível, sejam incluídas as condutas de “outrização” (a homofobia, portanto).

    Pelo que entendi, você também concorda com isso – já que disse “[...] não estou a dizer que a homofobia não deva ser considerada crime, deve! “. E, portanto, concordo com mais um argumento seu: “Talvez seja tudo uma questão de linguagem, para que os acordos e desacordos teóricos se alinhem...”

    A propósito, achei fantástica a escolha do texto para a próxima reunião! Queria muito estar aí! :(

    Gente, NÃO PERCAM O PRÓXIMO ENCONTRO DO ASA BRANCA!!!!!!!!

    Beijão!

    Nanda

    PS: Eu tive a honra de assistir a uma aula de Louk Hulsman em 2007. Mesmo não concordando (nem à época, nem hoje) com o grau de abolicionismo que ele defendia, eu nunca mais pensei da mesma forma em relação ao Direito Penal depois de assistir a aula dele. Ele era uma figura impressionante. E eu acho que ele conseguiu o que queria. Acho que, no final das contas, ele não queria convencer todo mundo de todos os seus argumentos; ele queria fazer com que todos nós repensássemos (criticamente) sobre as “obviedades” que nos são impostas em relação ao sistema atual de justiça criminal...

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  5. Bom, já que concordamos em quase tudo, então vamos encerrar esse post :)

    É uma questão de técnica legislativa a criminalização da homofobia, que não sei necessariamente se deveria estar incluída na lei de racismo, pelas próprias razões históricas que você mencinou. No entanto, esse ponto da discussão, sinceramente, não tenho cabedal para fazê-la.

    A única coisa que tenho certeza, aliás, que nós temos certeza, é a de que o Sistema de Justiça Criminal não resolve problema nenhum! Outra certeza que também tenho é que o bem jurídico, contemplado pelo princípio da legalidade, é uma técnica dogmática extremamente retórica, ambivalente,manipulável conforme deseja o operador, o que, acredito, também cabe no caso de homofobia.

    Mas enfim, essa discussão é interminável...

    ps.: que honra ter tido aula com Louk Hulman... essas suas andanças internacionais realmetne valem muito a pena :)

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  6. Boa tarde,

    Sem dúvida alguma, esse processo de "othering", em uma sociedade que se pretende plural, como a nossa, é, de fato, inconcebível e, por isso, merecedor de iniciativas do Estado para coibi-lo.

    Em relação, especificamente, aos absurdos comportamentos homofóbicos, que vão desde piadas discriminatórias até homicídios, resta, contudo, perquirir de que maneira e com que intensidade o Direito Penal se apresentaria como um mecanismo legítimo para o enfrentamento do problema.

    Pois bem, de imediato, entendo que qualquer iniciativa criminalizante de comportamentos homofóbicos jamais poderá desprezar as clássicas e liberais garantias do Direito Penal e do Processo Penal.

    Revelo essa preocupação, porque, se examinarmos muitas das legislações penais extravagantes, que vieram a atender a clamores sociais das mais diversas origens (Lei de Drogas, Crimes contra o Meio Ambiente etc.), constataremos situações de manifesta desproporcionalidade de penas, tipos demasiadamente abertos e normas processuais de duvidosa compatibilidade com a presunção de inocência. E isso, na minha opinião, deve ser evitado.


    Enfim, também concordando com uma postura minimalista do Direito Penal, entendo que a criminalização só terá legitimidade, se, além de respeitadas as clássicas garantias penais e processuais penais, a tipificação ocorrer em face de condutas realmente graves, potencialmente ofensivas à integridade física, psíquica ou à vida de homossexuais. E a técnica mais adequada, para tanto, a meu ver, poderia ser a criação de espécies qualificadas (novas penas mínima e máxima) de tipos que já buscam proteger os mencionados bens jurídicos.

    Bem, é essa uma primeira opinião minha sobre o tema.

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